quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Circulando por Cuiabá



Por Elaine Tavares.
Os aglomerados urbanos exercem sobre mim profundo encantamento. Por conta disso, gosto de caminhar pelas cidades, sentindo a beleza que nasce desde a mão humana. Mesmo nos lugares mais inauditos, sempre é possível realizar esse que é o encontro mais sagrado: o da nossa humanidade. Foi assim que o mês de setembro me surpreendeu em Cuiabá, Mato Grosso, a porta de entrada da majestosa Chapada dos Guimarães. Nas primeiras horas, um estranhamento. Longas avenidas, casas baixas, cidade gris, esfumaçada pelas queimadas, vegetação seca, e o abafado calor. Faltavam as gentes.
Então, pelas generosas mãos da Rose, baixamos para o centro. Baixar é mesmo o melhor verbo, já que a parte histórica da cidade fica numa depressão. Aí, foi uma sucessão de belezas. O centro de Cuiabá é a vida pulsante da cidade. As ruas mais estreitas, a profusão de lojas, os casarões antigos, as casinhas geminadas, as mangueiras carregadas de frutas e os cuiabanos. Essa gente ora pantaneira, ora amazônica, ora do cerrado, de cor de cuia, traços indígenas e cheia de alegria. Apesar do calor de deserto, as ruelas fervilham – muitas foram transformadas em calçadões – a música toca alto, e os mais velhos descansam nas praças cheias de grandes mangueiras. Também pululam as barraquinhas, com artesanato local e comidas de rua, os mais espetaculares pitéus.
Na Praça Santos Dumont, no cair da noite, pode-se visitar a barraca do Sérgio Pavão, um carioca que escolheu Cuiabá para viver e foi o primeiro a trazer para a rua a comida típica do lugar. Maria Isabel – uma espécie de carreteiro, Feijoada de Pintado, Arroz com Pacu seco, feijão empamonado, farofa de banana , carne seca com banana verde, ventrecha de pacu, mujica de pintado com mandioca, e uma série de outras delícias. O sabor de Cuiabá, esse lugar mágico.
De manhã, pode-se tomar café em qualquer padaria, sempre acompanhado da chipa, uma espécie de salgado com queijo e o famoso bolinho de arroz, marca registrada da cultura local. Arroz pilado, docinho, evocando a beleza da vida simples, pantaneira.
O Mercado do Peixe, próximo ao rio Cuiabá, no finalzinho do centro histórico, é espaço de maravilhas. Todos os peixes da região se mostram em beleza, alimento das gentes, marca da cultura. O pescador, assombrado com a formosura do dourado, o qual pesca diariamente, anuncia orgulhoso: “Esse é o rei do rio. O mais bonito, o mais forte”. Ele diz que a batalha com o peixe é sempre uma epopeia, daí o seu respeito pelo bicho. Coisa de emocionar. Nas barracas das frutas aquele cheiro fresquinho, o perfume da manga, banana, caju, jaca, bocaiúva, pequi. Um universo colorido que enche a boca de vontades. O famoso furrundu, doce típico do lugar e a farinha de mandioca flocada são estrelas no lugar. O lugar ainda vende toda a sorte de comidas típicas, o néctar dos deuses.
Ainda próximo ao rio está o Arsenal, antiga penitenciária colonial que foi totalmente reformada pelo sistema do Sesi. Virou um centro de cultura dos mais incríveis. Por ali, na tarde modorrenta, dezenas de crianças circulam nas oficinas de dança, no teatro, cinema, bibliotecas e oficinas de música. Também ali se pode encontrar a famosa viola de cocho, instrumento típico daquele povo. É uma viola feita de um único tronco, apenas escavada no local onde deveria ficar o buraco que forma a caixa de ressonância. Chama-se assim porque é feito do mesmo jeitinho que o caboclo faz o cocho para alimentar os animais. É invenção do povo simples da roça, e arpeja os sons mais doces, porque cheios da simplicidade do homem rural. Ouvir a viola é comungar com alma do pantanal, tanto que ela já considerada patrimônio imaterial da região.
E assim se vai conhecendo as riquezas de Cuiabá. Na igreja de Nossa Senhora do Bom Despacho pode-se admirar a arquitetura. Ela é uma réplica da catedral de Notre Dame e enche de orgulho aqueles que ali trabalham. Mesmo no adiantado da hora, o vigia abre a porta para que as pessoas entrem e admirem. “É a nossa riqueza, temos de mostrar”, e aponta, orgulhoso, as reformas feitas, a nova pintura e a beleza da imagem da virgem, esculpida em madeira e com cara cuiabana.
Em frente à Câmara de Vereadores está outra coisa fascinante. A demarcação do centro geodésico da América do Sul. Exatamente o meio do nosso lindo continente. Um obelisco marca o ponto exato do coração pulsante desta parte sul de Abya Yala e ali pode-se sentir a energia poderosa de um “povo sin piernas, pero que camina”. Cuiabá é exemplo disso. Dominada pelas forças do latifúndio e do agronegócio mostra também muita pobreza, essa pobreza que nasce da exploração contínua e cotidiana. Ainda assim, sente-se a potência das gentes, na resistência concreta do dia-a-dia, com sorriso na cara, mas com a mão valente sempre pronta para a luta. Agora, que a cidade virou sede da Copa do Mundo, a vida se complicou. As obras estão em todos os lugares, as ruas estão trancadas, o aeroporto fecha, o transtorno é grande. “Fazem estádios e não calçam as ruas”, reclamam os que sacolejam nos ônibus lotados e escassos. Boa parte das gentes acredita que vai ser bom sediar a copa, acreditam nos governos que os jogos trarão fartura. Mas outro há que sabem das mazelas e estão vigilantes.
Cuiabá também é centro de muitas batalhas travadas pelos povos indígenas. Desde as incursões dos ferozes bandeirantes que avançavam pelo centro brasileiro na busca do ouro, que as comunidades da região amargam derrotas e terrores. Os primeiros a enfrentar a sanha invasora foram os coxiponés, e depois as demais etnias, cada dia mais empurradas para o abismo das reservas e da vida tutelada. Desde a fundação da cidade em 1719 até os dias de hoje, os indígenas precisam batalhar para garantir cada pequeno avanço de demarcação de terras, de preservação da cultura, de vida digna. E, como no passado, hoje seguem enfrentando os gananciosos, os ferozes grileiros de terra, os grandes fazendeiros, que passam ao povo – quase todo de descendência indígena – a ideia de que índio é coisa ruim, é atraso do progresso e que, portanto, deve ser eliminado. Mas, ao mesmo tempo, esses mesmos dominadores usam da beleza da cultura indígena para ganhar dinheiro. É comum ver hotéis com nomes indígenas, decorados com quadros que mostram a vida simples do homens e mulheres autóctones. No Paiaguas, um hotel chique do centro, tem até estátuas de índios para encher a vista dos turistas. Mas não se engane, é só para turista ver. No geral, o preconceito contra os povos originários é grande. Só que eles não se entregam. E hoje estão numa grande luta contra a absurda portaria 303, da Advocacia Geral da União, um golpe baixo do governo que pretende rever as demarcações e expulsar os índios de suas terras.
De tudo o que vi em apenas dois dias de vivência intensa faltou a Chapada, esse gigante natural do qual apenas senti o hálito. Mas, ainda assim, o encontro com as pessoas, o carinho da acolhida, a partilha amorosa de vida marcou de forma indelével o coração. Cuiabá nunca mais será um ponto no mapa. É o coração da minha américa do sul, é lugar da magia da viola de cocho, é morada de amigos, espaço do rasqueado, essa música simples, de poética ingênua, que nos toma a alma.
Na noite quente cuiabana, num quintal fresquinho, debaixo da mangueira e do pessegueiro, enquanto o gato caçava comida, encerramos um seminário sobre liberdade de expressão à moda de Cuiabá: quente, fraterno, alegre, comunitário. Poucas vezes me senti tão plena!…


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